domingo, 28 de outubro de 2012

Reserva


RESERVA

            A segunda noite após a sua chegada viera ressuscitar seus medos diante daquele olhar que, sem direção, não tinha onde descansar.
            Seus olhos sempre foram um profundo mistério, de raro brilho e nenhuma beleza. Seu coração também não era simples de se descrever. Assim se abria o horizonte do seu mundo.
            No primeiro instante sentiu saudade do desconforto da última poltrona daquele ônibus noturno. Desconfortável para suas longas pernas, definitivamente massacrante para seu bumbum magrinho. Porém fascinante à sua sensibilidade.
            O casal já estava antes que ela chegasse e ali continuou depois que ela se foi.
            Louro. Foi sua primeira observação. Única possível numa visão tão rápida. Ao lado de uma mulher de cabelos negros. Completou o anúncio que prendera completamente sua atenção.
            Já estava cativa daquele quadro. Agora começaria a decifrá-lo centímetro por centímetro, até o fim. Fim que não se sabia onde estava.
            Por alguns minutos ela fazia palavras cruzadas e ele ouvia música. Muitas luzes estavam acesas até àquela hora. Foram-se apagando no decorrer da viagem, uma após a outra. Até que só a dele permaneceu.
            Adormecida agora ela recebia um carinho discreto e um beijo de boa noite. Dormia em paz como só dormem os que conhecem o amor.
            Ele desperto desafiava a lógica e pouco a pouco se transformava no centro de todas aquelas visões tão diferentes.
            O escuro da noite transformou numa imensa tela os vidros da janela que refletiam sua imagem.
            Algumas vezes ele se movia em bruscos movimentos com o pescoço de um lado para o outro, cansado da inércia imposta pela situação.
            Distraía-se lendo os encartes dos CDs que ouvia. Sua imagem linda ia sendo contemplada e traduzida da poltrona.
            Seus cabelos louros eram curtos, suas costeletas contornavam bem seu rosto másculo e bem traçado. Seu nariz exibia-se bem definido, também seus lábios que uma só vez mostraram aquele sorriso.
            Suas mãos eram brancas e lindas.
            Quando em um momento de relaxamento ele as cruzou por detrás da cabeça, tocando suavemente os cabelos. Depois as firmou contra a nuca para movimentar a coluna.
            Então vi que usava um colar colorido e que toda atenção dispensada até aquele momento era no intuito de ver ali outro alguém. Constatei ainda que vestia uma camisa de malha vermelha e que suas coxas grossas tinham tanta beleza quanto todo o resto.
            Assim ele apagou a luz dissolvendo minha tela em total escuridão.
            Meus olhos vagaram mais uma vez e meu coração entendeu que eu viajava buscando você.


 29-07-2002

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